Uma procrastinadora com carteira carimbada veio falar de coisas que deixamos para depois hoje, é mole? Bom, considero essa News como uma autocrítica ou uma tentativa de mudar as cenas por aqui. Quem sabe? A maioria das pessoas que convive comigo duvida bastante disso, mas posso trazer argumentos ao meu favor. Vou te dar um exemplo: sempre fui uma pessoa totalmente atrasada e agora já espero no sofá o restante da família ficar pronta algumas vezes. Evoluímos. Depois de anos, claro. Mas aqui estamos.
Será que realmente podemos mudar nossos comportamentos mais costurados em nós mesmos? Aquelas coisas que repetimos por uma vida inteira, desde o nosso começo nesse mundo e que por mais que tentemos fugir, acabamos sempre lá. Gosto muito de comparar meus comportamentos com os das pessoas ao meu redor porque acho que isso pode explicar um pouco, não tudo. O ambiente influencia muito no bom e no ruim. Mas, vamos ser sinceros, não é tudo. A outra parte é por nossa conta.
Quando crianças, quase não temos domínio nenhum sobre nossas escolhas. Não sabemos escolher e quando achamos que sabemos, não podemos. Depois, na fase adulta, ganhamos essa oportunidade e dever de escolher, mas muitos já não querem mais. Em muitos dias, eu não quis. Em muitos dias, a única coisa que eu queria era não ter que escolher nada. Mas nesse momento, já não temos essa opção.
Escolhas dão trabalho. O que isso tem a ver com a procrastinação? Tudo, no meu olhar. Quem procrastina adia. Tem medo de fazer escolhas ou de escolher errado. Não é apenas um preguiçoso como muitos pensam. Geralmente, são pessoas muito exigentes com elas mesmas. Caem na armadilha de não fazer na hora em vez de fazer sem cuidado, sem atenção, sem “tempo”. E aí acabam procrastinando tarefas simples, coisas pequenas que poderiam ser resolvidas em minutos - deixo claro que me incluo nessa.
Tem dias que olho para as coisas que estou adiando - a grande maioria cabe numa pilha ao lado da minha cama, ou de roupas ou de livros ou de papéis - e me pergunto por que não largo tudo e resolvo aquilo imediatamente. E não vim aqui te entregar uma resposta para isso porque também não tenho ainda comigo, só sei que tem coisas que parecem impossíveis de serem feitas até que são.
Até que você vai e faz e ficam do tamanho de uma semente de fruta. É ridículo. Quando você termina de fazer, dá uma olhada para o que fez e pensa: era só isso? É tão engraçado porque aquela coisa finalizada e feita me faz tão feliz, me deixa tão aliviada, ainda que pequena. Por um segundo, sinto que posso fazer qualquer coisa - já que venci as armadilhas da minha própria mente, não cedi daquela vez.
No conto clássico da Clarice, Felicidade clandestina, a autora conta sobre o momento da espera e o quanto a expectativa cria na personagem o profundo desejo (eu amo esse conto). A menina que quer o livro emprestado não o tem por vários dias e a expectativa aumenta todo o prazer contido naquela vontade, que quando realizado diminui e a espera se tornou, sem que ela tivesse notado, mais prazerosa do que a realização. Mesmo quando recebe o livro em mãos, o esconde só pelo prazer de não o ter novamente. Leia o conto aqui
“Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.” - Felicidade clandestina, Clarice Lispector.
Sabe quando a gente pede um hambúrguer no aplicativo de comida e não consegue parar de verificar o trajeto do pedido por causa da fome desesperada e do desejo de comer algo que queremos muito? Lembra o que acontece quando esse hambúrguer chega? E quando vai para a boca? Em poucos minutos todo esse desejo some, acaba engolido. A gente quase não sente o prazer, é tão rápido e puf! Acabou.
Nossa vontade de adiar pode ter uma raiz parecida com isso. Eu penso que na procrastinação, a “espera” causa um certo conforto porque a tarefa parece mesmo desconfortável. O desconforto existe também pela necessidade que aquela tarefa nos pede, apesar de não ser tão difícil assim. Em muitos casos, é bem simples, bem fácil, então o que justificaria a demora?
Nos últimos dias, ouvi uma neurocientista dizendo que a procrastinação não é sinal de preguiça, mas de uma resposta ao estresse. A nossa mente busca a “previsão emocional” que aquela tarefa irá gerar e quando identifica uma emoção negativa, busca alívio imediato. As distrações que buscamos no momento de evitar uma tarefa funcionam como esse alívio para o estresse, por isso acabam sendo quase irresistíveis.
Ou seja, realmente estamos muitos ansiosos. Nosso cérebro já sofre mesmo antes de fazer alguma coisa, de pensar em alguma coisa. Até no futuro as emoções negativas são praticamente insuportáveis. Não basta sofrer com o hoje, se o amanhã (ou o daqui a cinco minutos) reserva uma atividade que nos fará sentir qualquer emoção negativa, nosso sistema resolve adiar. E ocupar todo o espaço de tempo disponível com qualquer outra coisa.
Se a procrastinação é resposta para o estresse, precisamos dar um jeito nele, certo? Mas eu fico pensando como isso é pessoal. Talvez o que crie estresse em mim não crie em você. E o que causa prazer para mim não cause para você. Se estamos “encontrando prazeres escondidos da nossa tarefa” (que é o procrastinar) é porque estamos sentindo falta desses hormônios no cérebro, do prazer, dos estímulos novos.
Ontem, lembrei de um livro sobre criatividade que gosto muito: Roube como um artista - Austin Kleon. E nele, tem um trecho que nos sugere a usar as mãos para entrar em contato com a criatividade. Principalmente, em tarefas analógicas. Essa eu já testei. Funciona mesmo. Já pintei aquarela, louça, montei quebra-cabeça, nunca parei de ler, cozinhei, agora faço palavras-cruzadas e em breve quero fazer cerâmica.
Me considera descontrolada? Imagina. Eu gosto mesmo é de arte porque ela me ensina a perder o estresse, abrir mão dele. E toda vez que evoluo em algum tipo dela, as outras tarefas “difíceis” da procrastinação parecem mais possíveis. É claro, por causa dela meu hambúrguer chegou e vou aproveitá-lo em tempo ilimitado. Meu desejo foi atendido. Ou melhor, está sendo.
A criação e a arte estão disponíveis todos os dias e eu penso que ela, que já me tirou de tanta furada, vai me ensinar a mudar mais uma coisa que pode melhorar na minha vida. Acabo de colocar outra na conta dela. Me perdoe por mais essa, minha querida, sei que está sobrecarregada.
Que sua semana seja produtiva (no sentido mais legal possível).
Beijos açucarados,
Mel
Para o seu café da manhã
Bolo de canela
Ingredientes:
1 xícara de chá de margarina
3 ovos
1 xícara de chá de leite (morno ou em temperatura ambiente)
1 colher de sopa de canela
1 xícara de chá de maisena
2 xícaras de chá de farinha de trigo
1 colher de sopa de fermento em pó
1/2 xícara de chá de açúcar
Modo de preparo:
• Junte a margarina e o açúcar até virar uma mistura homogênea, acrescente os ovos e misture. Acrescente a maisena, a canela, e a farinha de trigo, alternando com o leite, cuidado para o mesmo não estar gelado e empedrar a margarina.
• Por último misture bem o fermento. Colocar em forma média untada e enfarinhada. Assar em fogo médio, em forno pré-aquecido, por aproximadamente 40 minutos, ou até dourar. Depois de pronto polvilhe com açúcar e canela.
Indicação literária dos leitores
Hoje a Penha Martiniano (@penhamartiniano no Instagram) indicou o livro Todas as crônicas - Clarice Lispector. Quando vi a indicação dela não pude deixar de colocar nessa edição porque Clarice faz parte dela do início ao fim. E faz qualquer leitor viver o prazer profundo da literatura que também é muito alívio para o estresse. Ler Clarice é sempre um mergulho no desconhecido, uma experiência com a arte. Obrigada pela indicação, Penha! Parece que você já tinha lido a edição, amei!
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